domingo, janeiro 12, 2014

Centenas de anos de Escravatura

Vi recentemente o filme «12 years a slave», de Steve McQueen, baseado na autobiografia (1853) homónima de Solom Northup, com comovente actuação de Chiwetel Ejiofor. O filme relata como Northup, um homem livre, negro, de Nova Yorque, carpinteiro, casado com dois filhos, é raptado em 1841 e vendido como escravo no Louisiana. O episódio data dos EUA pré-guerra civil (1861-65) e antes da Declaração de Emancipação dos escravos (1863). A escravatura era legal em vários estados, em particular a sul da linha Mason-Dixon, mas a importação de escravos de Africa já havia sido ilegalizada (1807). Enquanto uma rede de abolicionistas (a Underground Railroad) procurava trazer escravos para a liberdade no norte, um conjunto de empreendedores procurava rendimento escravizando homens livres. Pensa-se que o número de vítimas deste tráfico supere um milhar, mas a quantificação é dificultada pois só raramente, como no caso de Northup, é que a liberdade foi novamente conquistada. Acresce que embora esta actividade fosse ilegal, os prevaricadores raramente eram condenados, como sucedeu no caso de Northup.

O episódio realça a fragilidade da liberdade de qualquer ser humano, como a liberdade é preciosa e não pode ser tido por garantida, mas tem de ser defendida e conquistada a cada momento. Sublinha também a condição de propriedade do escravo, e em como supostamente tal garante direitos ao proprietário. Com isto explora também a condição de roubo que é inerente à propriedade, neste caso roubo da liberdade.

A venda como escravo de um homem negro de Nova Yorque é uma instância da venda mais alargada de homens livres de África. Estima-se que entre 1525 e 1866, ou seja ao longo de 341 anos, mais de doze milhões Africanos livres foram importados para as Américas (ver). Mais de um milhão e meio morreu vítima das péssimas condições de transporte trans-Atlânticas (a chamada Middle Passage), um tráfico no qual Portugal teve um papel pioneiro. A grande maioria destes escravos foram levados para a América do Sul. Só o Brasil recebeu quase 5 milhões. O número de escravos Africanos efectivamente importados pelos EUA foi de apenas meio milhão.

Referi que muitos dos Africanos roubados das suas terras, às suas famílias e comunidades, eram livres. Os apologistas do comércio de escravos gostam de referir como tribos Africanas praticavam escravatura, e em alguns casos eram estas que reuniam escravos para os vender aos comerciantes europeus, como se isso legitimasse a actividade. É apenas a perpetuação e apropriação de uma indignidade. O "tratar bem" os escravos também não legitima a escravatura. Claro que o seu tratamento é relevante, mas boas condições de vida não óbviam a falta de liberdade. O bom tratamento até decorre da condição de propriedade: por regra, procura manter-se a propriedade em boas condições (ou condições mínimas) para trabalhar e se reproduzir. A punições traziam custos para o proprietário e eram usadas controladamente para manter a ordem e submissão, para reforçar a condição mental de escravo. Essa campanha psicológica era promovido por todo um conjunto de instrumentos, que condicionavam o escravo a tornar-se até agradecido por algumas benesses ocasionais, por ascensão de escravo do campo para escravo de casa, criando uma diferenciação entre os próprios escravos. Mecanismos semelhantes aos promovidos em campos de concentração e que tem ecos com o Síndroma de Estocolmo, no qual os raptados ganham laços positivos com o raptor. Isto é, um dono de escravos benévolo não deixa de ser um proprietário de seres humanos.

A escravatura infelizmente não desapareceu. Uma recolha da Walk Free Foundation, de 2013, estima que existirão actualmente cerca de 30 milhões de escravos no mundo. Dez países são responsáveis por três quartos destes escravos: Índia (cerca de 14 milhões), China (3 milhões), Paquistão (2 milhões), Nigéria (700 mil), Etiópia (650 mil), Rússia (meio milhão), Tailândia (470 mil), República Democrática do Congo (460 mil), Mianmar (280 mil) e Bangladesh (340 mil). Em termos de prevalência, isto é o seu número tendo em conta o tamanho da população, a Mauritânia e o Haiti estão no topo da lista. Portugal está também na lista, com um número estimado de 1350 escravos. A sua condição foi objecto de reportagem recentemente no Público.

Todo este processo tem também paralelos com a condição do trabalhador assalariado, que sendo livre para vender a sua força de trabalho, depende do capitalista para ganhar salário. Também o capitalista tende a criar a ilusão de que o trabalhador é seu colaborador, ofuscando a subjacente luta de classes. A democracia burguesa alimenta a ilusão de liberdade política, enquanto a limita ao voto em processos eleitorais condicionados pelo poder económico; de liberdade de expressão, quando a divulgação ideológica de massas é controlada pelo poder económico, promovendo os seus interesses. A liberdade individual formal, grande conquista das revoluções burguesas, é condição para a conquista da liberdade efectiva, liberdade da fome, intempérie, ignorância, exploração. A plena realização da liberdade está em muitos casos ainda por conquistar.





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