domingo, agosto 11, 2013

Cheques ensino sem cobertura

O atraso relativo de Portugal permitir-nos-ia tirar proveito da experiência de medidas políticas noutros países, se não fosse o facto dos nossos líderes políticas se gabarem de seguirem (cegamente) o livro de instruções neo-liberal. Por exemplo, a actual discussão sobre a privatização de água em Portugal poderia beneficiar da experiência no Reino Unido, que atira por terra todos os supostos benefícios de tal medida. Iniciada em 1989, sob Thatcher, levou a um aumento de preços e custos, enquanto os lucros subiram; o investimento foi reduzido; a infraestrutura não foi mantida; e a saúde pública foi ameaçada.
Esta 5a o Ministério da Educação de Nuno Crato abriu nova frente no ataque à escola pública, no âmbito da revisão do estatuto do ensino particular e cooperativo, ao reavivar os “cheques-ensino”.
O grande apologista da sua versão moderna foi um dos grandes ideólogos do neo-liberalismo, Milton Friedman. Em breve a ideia é a seguinte: o Estado gasta X por aluno no ensino público; ao dar esse X (ou parte) do erário público aos pais para que possam colocar o seu filho num colégio privado, dá-se-lhes maior liberdade para escolher a escola, e estimula-se a competição entre as escolas, levando a melhorias no ensino e na gestão escolar.
Segundo Rodrigo Queiroz e Melo, director executivo da Associação dos Estabelecimentos de Ensino Particular (AEEP), citado pelo Público, “contratos simples de apoio às famílias” já estavam previstos desde os anos 80 (Decreto Lei 553/80). Em 2011, estes abrangiam quase 22.500 alunos, sobretudo agregados de baixo rendimento. A nova versão da lei permitiria a generalização destes contratos ou “subsídios”.
Os cheques-ensino são porém uma forma do Estado subsidiar o sector privado cujo negócio é o ensino. Um mecanismo que parte de um pressuposto incorrecto sobre a função dos nossos impostos. Parte dos impostos que os pais pagam vai para o sistema de educação público, e não directamente para a educação dos seus filhos em particular. Parte dos meus impostos também vão para esse sistema, embora não tenha filhos. E apraz-me que assim seja, pois quero viver num país sem analfabetismo, em que os jovens recebam uma boa educação, em que a força de trabalho seja qualificada. E ao subsidiar os pais com um cheque-ensino, com uma fracção dos seus descontos de IRS (pela via que seja), o custo por aluno que permanece no ensino público aumenta e/ou aumenta a quantia que as restantes pessoas têm de pagar para manter esse sistema.
Mais uma vez, Portugal pode beneficiar da experiência da aplicação deste mecanismo noutros países, para aferir as suas consequências. Usarei como referência o extenso debate sobre o tema nos EUA, por ser a realidade que conheço melhor. Todos as principais organizações ligadas à educação, incluindo o National Education Association e o American Federation of Teachers, são contra os “school vouchers” (também referidos por outros eufemismos, como bolsas). Os seus argumentos cobrem todo um espectro:
  • os cheques-ensino não oferecem efectivamente liberdade para inscrever filhos nas escolas onde se queira, pois são as escolas privadas que determinam quem nelas é aceite.
  • O ingresso numa escola privada implica custos acrescidos (e.g., transportes, uniformes, etc.) que as famílias menos privilegiadas poderão não poder comportar, não tendo assim efectivamente a suposta escolha livre. Os cheques ensino aprofundam assim diferenças sócio-económicas.
  •  Ao centrar a discussão política na “liberdade de escolha” e nos “cheques-ensino”, diverte-se da discussão mais importante sobre as escolas públicas (onde estão a maioria dos estudantes), de como ultrapassar o seu crónico sub-financiamento, e como resolver os problemas no ensino público através de medidas comprovadas, como a diminuição do tamanho das turmas.
  • nos EUA, a maioria das escolas privadas e que recebem alunos com cheques-ensino são escolas religiosas, que exercem critérios discriminativos na aceitação de alunos. Tal constituiu também mais um atentado à separação entre Estado e religião.
  • Não há qualquer evidência que as escolas privadas sejam mais eficazes a gerir o dinheiro (pelo contrário, acumulam-se casos de má gestão, uso inapropriado de fundos, e simplesmente custos por aluno superiores ao da escola pública).
  • Não há qualquer evidência que os alunos que usem cheques-ensino vejam a qualidade do seu ensino melhorado.
  • nos estados dos EUA com cheques-ensino, praticam-se dois sistemas de avaliação dos alunos, que agravam a diferenciação entre alunos do privado e público.
Assim, os cheques-ensino não têm qualquer benefício demonstrado para a qualidade do ensino público ou dos alunos que os usam para frequentarem o ensino provado e não contribuem para corrigir desigualdades sócio-económicas (pelo contrário). Refutados os benefícios sociais e educativos, resta o óbvio mecanismo de transferência de verbas para o sector privado e a elitização da educação. Juntamente com os ataques aos professores, suas carreiras e dignidade profissional para exercer a função docente, os cheques-ensino são um ataque ao sistema de ensino público e uma relevante frente de ataque ao sector público e ao Estado social.

Nenhum comentário: