sexta-feira, fevereiro 03, 2012

A crise do capitalismo e a reposta da esquerda

Dois dos mais velhos media sobre temas económicos (fundados no século XIX), The Economist e o Financial Times, têm vindo a publicar artigos debatendo a Crise do Capitalismo. No seu editorial, o FT defende o papel do Estado como (mero) regulador do mercado. O TE reconhece o sucesso com que economias em que o Estado tem um peso grande (caso da China - 80% do valor na bolsa é de companhias estatais; Rússia - 62%; Brasil - 38%) têm sido capazes de recuperar da crise financeira, mas tem reservas quanto à capacidade de inovação destes sistemas, guardando para o mercado livre a propriedade de economia criativa. Embora o FT tenha dado espaço à opinião de representantes do movimento Occupy London, o espectro ideológico posto à consideração é limitado ao canto liberalismo-social democracia.

Segundo Francis Fukuyama, conhecido pela sua prematura proclamação do fim da História, num artigo no Foreign Affairs (libertei o texto aqui) acusa a Esquerda de "anémica" e de "falhar no reino das ideias", afirmando que a "ausência de uma contra-narrativa progressista plausível é doentio" e que é urgente um "debate intelectual sério". Em parte, a descrição do terreno intelectual como paupérrimo deve-se ao facto de opinar que o Marxismo "morreu há muitos anos, e que os poucos velhos crentes que ainda existem estão prontos para os lares de idosos". A esquerda académica substituiu-o pelo pós-modernismo e multi-culturalismo, e não há ideologia rival plausível à hegemonia da democracia liberal. Como candidatos considera apenas a teocracia islâmica, que é um beco sem saída, e a China, cujo modelo é de "governo autoritário com economia de mercado parcial [mista]" é "culturalmente específica" e poderá não ser sustentável.

 Reconhecendo as tremendas desigualdades criadas pelo actual sistema hegemónico, Fukuyama espanta-se que os movimentos populistas têm sido sobretudo de direita (como o Tea Party). A ausência de um equivalente à esquerda, segundo o mesmo, deve-se ao facto ninguém à esquerda ter sido capaz de "articular, primeiro, uma análise coerente do que sucede em sociedades avançadas à medida que mudam economicamente e, segundo, uma agenda realista que tenha qualquer esperança de proteger uma sociedade de classe média". Acusa, então, o modelo da social-democracia de exausto, e articula os elementos do uma futura ideologia. Politicamente democrata, protegendo a classe média, mas não podendo limitar-se ao Estado Social, fazendo uso das novas tecnologias no sector dos serviços (?), garantindo uma redistribuição de riqueza e pondo fim ao domínio dos  interesses [privados, monopolistas] na politica. Economicamente "não pode basear-se numa denúncia do capitalismo como tal, como se o velho socialismo ainda fosse uma alternativa viável", mas um capitalismo em que os mercados não seriam um fim em si mesmos, mas "valorizando o comércio global e o investimento na medida em que contribuem para o florescimento da classe média".

Até aqui limitei-me a espelhar a linha de pensamento de Fukuyama, e oferecê-la à consideração e crítica dos leitores interessados. Haveriam muitos pontos por onde pegar para fazer uma crítica à sua análise, começando por recusar a sua descaracterização do Marxismo, seu lugar na História e na actual arena intelectual. Fukuyama claramente não entende o conceito de classe social marxista, que confunde com estrato económico, o que desde logo desvaloriza a sua identificação da "classe média" como agente económico. Não entende a análise de propriedade, ao confundir a propriedade privada da "classe média" com a propriedade dos meios de produção.

Ao remeter a análise marxista para o caixote do lixo ideológico, fica impedido de a reconhecer como um corpo teórico que soube dar o devido valor ao capitalismo, enquanto fase económica capaz de gerar riqueza, soube analisar os seus mecanismos e prever exactamente o processo de globalização e suas contradições; o processo de crescimento do sector dos serviços (no mundo desenvolvimento) e a transferência do sector produtivo, na economia global, para países em desenvolvimento; o potencial de, em diferentes fases da correlação de forças sociais, haver menores ou maiores desigualdades económicas.

O capitalismo tem já vários séculos de história, mas apesar do aprofundamento de alguns processos (como a mobilidade de mercadorias, incluindo a força de trabalho, e crédito) e o engrandecimento de alguns ciclos (como o crescente peso do sector financeiro), no fundamental não alterou a sua fisiologia. É natural que Fukuyama se sinta frustrado na busca de novas formas dentro das fronteiras do capitalismo, pois recusa-se a pensar fora desse enquadramento.

A sua crítica de que a Esquerda não tem sido capaz de galvanizar largos sectores das sociedades ocidentais em torno de um ideário, de uma agenda, merece, porém, alguma consideração. (Fukuyama não discute os diversos processos na América Latina, desde Cuba, à Venezuela e Brasil.) Haveria que considerar o uso da comunicação social pelo poder económico, homogeneizando e empobrecendo o discurso político; o uso do Estado e seus instrumentos contra forças políticas e sociais lutando por alternativas.

Cabe perguntar: o ideal da justiça social já não move os sectores explorados e oprimidos? Não me parece que esse seja o caso, se até o Fukuyama parece movido por ele. São mesmo precisos novos ideais? O lema, nunca concretizado, da Revolução Francesa ("Liberté, égalité, fraternité") não só me parece ainda válido, como ainda me parece motivador. Não me parece que o que faça falta seja a identificação de novos ideais ou a contratação de um empresa de marketing para relançar os velhos ideais ("Igualdade, agora com bifidus activos"). Claro que a Esquerda não perderá nada em usar as novas tecnologias, em fazer uso da criatividade, mas em última instância nada substituiu a comprovada táctica de estar junto das pessoas, conhecer as suas situações e dificuldades, e com elas encontrar formas de as ultrapassar.

Fukuyama parece-me demasiado mesmerizado com o que descreve como a hegemonia da democracia liberal. Não pode haver uma agenda de esquerda plausível e universal. Por alguma razão Marx não deixou um mapa das estradas para o Socialismo. O seu materialismo dialéctico ditava que qualquer processo histórico de superação do Capitalismo iria depender das condições sociais e económicas, subjectivas e objectivas, do país. Existe um arsenal de experiências e soluções que podem ser usadas, e no decorrer do processo de transformação social e político os agentes sociais podem fazer uso desse manancial de forma diversificada e ajustando-o às condições concretas. O Socialismo é um gerúndio.

Existe talvez um factor que limita a mobilização em torno dos "velhos ideais" com o espírito não só de resistir, mas de transformar e construir: a confiança de que é possível. Os explorados e oprimidos, as vítimas da desigualdade, os 99%, naturalmente clamam pelos velhos ideais, lutam por eles, sentem que é necessário mudar, mas esse impulso esbarra perante a experiência de manutenção do status quo, de que as forças contra as quais lutam são mais fortes; que se alcançam pequenas vitórias, que se logra por vezes travar medidas ainda mais brutais, mas que a mudança profunda está fora do seu alcance, é para a geração seguinte.

O facto da mudança ser necessária e possível, de sermos agentes não só de resistência mas de transformação, porém, só se conquista e generaliza lutando. Das pequenas às grandes lutas. Ajuda haver exemplos de referência, casos de sucesso. A URSS constituiu um farol de esperança para milhões de pessoas; e o seu colapso foi motivo de desânimo. Cuba é um referencial para muitos dos que constroem novos modelos de sociedade na América Latina. O 25 de Abril ainda constitui um referencial para muitos Portugueses. E em Portugal temos propostas de agenda de transformação. As análises e contribuições para a campanha «Portugal a Produzir», enquanto propostas concretas, realizáveis, plausíveis, abertas a melhoramento, mereciam maior consideração e discussão mais generalizada. Propostas que nos servem de base como força impulsionadora, primeiro no nosso imaginário e depois no concreto.   

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