terça-feira, julho 06, 2010

Nacionalismo vs Patriotismo

A recente leitura de «Os Thibault» e a actual leitura de «Hitler: ascensão irresistível? - ensaios sobre o fascismo.», de Kurt Gossweiler, publicado pela editorial Avante!, e o campeonato mundial de Futebol (sobre o qual me vou resistir comentar), tem-me levado a reflectir na importante diferença entre dois termos erroneamente tomados muitas vezes como sinónimos: Nacionalismo e Patriotismo. [Atenção: Esta abordagem será necessariamente simplista, primeiro pela sua dimensão reduzida, segundo porque não tenho formação em ciências sociais e um conhecimento aprofundado da história dos dois conceitos.]

Os conceitos têm contexto e história (i.e., uma evolução), logo convém começar pelo conceito com origem mais antiga: Patriotismo.A palavra tem origem no grego patris. Para os gregos antigos a palavra estava associada à identificação com e à devoção a uma língua, tradições e história, ética, lei, e religião comuns. Sócrates acreditava inclusivamente que a prática patriotismo não era algo estanque, mas sempre sujeita a melhoria, embora a sua opinião não fosse partilhada por outros gregos contemporâneos: o seu julgamento foi, em parte, fundado na sua recusa de divindades gregas oficiais. Surgiu portanto muito antes da noção de Estado-nação. Pessoalmente, gosto até mais do neologismo Matriotismo: falamos na terra mãe, em mátria, em matriarca, mas não existe lamentavelmente este equivalente feminino a patriotismo. É uma formulação mais próxima do conceito Hindu, onde a mátria era entendida como a base de consciência cultural. Mesmo no século XVIII, na Europa Ocidental, patriotismo era entendido como a responsabilidade individual perante os outros cidadãos, uma devoção à humanidade e a uma ética de igualdade e caridade perante os mais desfavorecidos e os que faziam parte da comunidade, independentemente do seu perfil cultural ou étnico.Isto é, Patriotismo não estava ligada a uma etnia, a uma localização geográfica, ou a uma organização política autónoma; nem estava necessariamente em contradição com um amor geral pela humanidade, o que podemos hoje designar como Internacionalismo.
Claro que durante esta fase existiam rivalidades entre comunidades, sentimentos de superioridade e desrespeito por outras comunidades, que eram usados para justificar ideologicamente a expansão de uma pátria, como por exemplo, a expansão do Império Romano. Mas note-se que mesmo neste caso, o Império  Romano não procurou inicialmente uniformizar culturalmente os territórios invadidos. Estes ficavam sujeitos à Lex Romana, considerado como um avanço civilizacional, mas mantinham a sua língua e as suas práticas culturais. O objectivo era integrar mais comunidades, diversas, no Império, não expandir o ser Romano da Península Ibérica ao Médio Oriente.

É no século XIX que surge o conceito de Nacionalismo, de nação como entidade política, com direito a um Estado (o Estado-Nação), no qual há condições para que cidadania esteja restrito a um grupo étnico. Mesmo em Estados multi-étnicos, uma étnica (muitas vezes, mas nem sempre, a maioritária) assumia predomínio político (veja-se o caso do Estado Espanhol). A Nação como algo a proteger; daí necessitar de um Estado próprio; daí vários nacionalismos terem conduzido à noção de "espaço vital" para a Nação. Se tem algo a proteger, é porque em certa medida tem algo que outras Nações não têm. Embora isto não implique a noção de que uma Nação, a nossa Nação, é superior em alguma medida a outras, ao "outro", frequentemente os movimentos nacionalistas associam superioridade, quer recorrendo a feitos modernos, como supremacia industrial, quer recorrendo a feitos ou mitos históricos (e.g, no caso no hino nacional Português, o "nobre povo, valente e imortal", a voz dos "os egrégios avós" que surge da "bruma da memória"). Mesmo Nações sem grande história, caso do povo colonial dos EUA, cedo declarou ter um "manifesto destino", que lhe outorgava o dever de expansão para territórios pretensamente desocupados, invasão de outros Estados, e domínio geoestratégico sobre uma vasta região. Foram das tendências nacionalistas que mesmo em Estados multi-étnicos, como os EUA ou o Brasil (durante a ditadura militar), surgiu o slogan "ame-o [a Nação] ou deixe-o", dirigido a cidadãos desses países que não alinhavam na política do Estado-Nação. 

O conceito de Nacionalismo, sim, está em profunda contradição com o conceito de Internacionalismo, ou cooperação e ligação fraterna entre comunidades ou nações (baseadas no facto de nações comungarem a mesma humanidade). Embora as nações pudessem celebrar acordos ou tratados, estes são acordados como realpolitik, estando implícito um clima de competição entre Estados-Nação, que com uma mudança de contexto podem ser ignorados. Como nota Gotweiler, a contradição entre Nacionalismo e Internacionalismo está muito patente dos primeiros discursos políticos do ultra-nacionalista Adolf Hitler, segundo o qual um operário consciente da importância da unidade dos proletários de todo o mundo não poderia ser um bom alemão, pois colocava as relações com operários de outras nações acima da dedicação à Alemanha; como se um operário Alemão internacionalista não estivesse também interessado na melhoria das condições no seu país. O mesmo relativamente aos judeus, que se consideravam uma Nação (sem Estado na altura), e cuja fidelidade à Alemanha não seria possível. O nazismo aliás espelha bem a identificação entre uma Nação e um perfil cultural, político e racial, muito específico. Esta contradição manifesta-se hoje, na era da globalização, na acusação de que os imigrantes roubam emprego aos nacionais, como se aqueles não contribuíssem para a produtividade do Estado para o qual emigraram.
Não há porém, como já referido, contradição entre ser-se Patriótico (ou Matriótico) e Internacionalista, em desejar-se o melhor para a sua comunidade e para todas as comunidades, em recolher o valor da mátria num contexto global diverso, em que todas as culturas têm direito a existir, provindo daí maior riqueza para a humanidade; e em reconhecer que apesar da existência de uma mátria, à ligações entre mátrias de outra classe que assumem grande importância.

É certo que os dois termos - Patriotismo e Nacionalismo - são hoje frequentemente referidos como sinónimos, pelo que é natural que se associe alguns aspectos próprios da corrente nacionalista com o conceito de patriotismo. Mas as suas raízes históricas e o seu uso demonstram tratar-se de conceitos distintos.Admito que pessoas afirmando-se "patriotas" exibem as formas mais retrogradas de xenofobia, e outras sob a bandeira "nacionalista", procuram promover a participação e auto-determinação de uma Nação (caso da corrente de Rousseau). Mas apesar de tais entre cruzamentos, persistem as diferenças históricas dos dois termos, e fundamentalmente a associação predominante de Nacionalismo com formas de dominância, racismo e xenofobia, e sentimentos de superioridade de uma nação sobre outra. Nem todas abertamente assumirão as formas extremas do Nazismo, devido às suas profundas associações negativas, mas é inegável que o Nacionalismo promovido pelo Partido Nacional Renovador (PNR) em Portugal tem um carácter xenofóbico, de Portugal para os Portugueses, como se o nosso povo não tivesse uma longa tradição de migração.

Uma última palavra sobre o direito à auto-determinação dos povos, um direito reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Carta das Nações Unidas e explicitamente pela Convenção Internacional sobre Direitos Cívicos e Políticos e pela Convenção Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Ambas convenções afirmam
"Todos os povos têm o direito à auto-determinação. Por virtude deste direito, pode determinar livremente o seu estatuto político e procurar livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural"
Noto que são feitas afirmações sobre a auto-determinação, e não sobre a independência, isto é a implicação que a existência de uma povo, ou Nação, tem direito a um Estado independente. Tal caso deve dar-se quando há uma coincidência entre um território e uma Nação. Foi por exemplo o caso do povo de Timor Leste. Sendo uma povo distinto, sob ocupação Indonésia, com história, língua, cultura e história própria constituía não só um povo com direito à auto-determinação, mas por haver uma coincidência entre uma região territorial e o povo Maubere tinha também o direito a reclamar independência da Indonésia. Não fosse esta uma uma potencia opressora e ocupante, o povo Maubere poderia ter optado por auto-determinação num sistema de região autónoma no seio da Indonésia. Caso semelhante sucede, presentemente, no Sarara Ocidental. Já o mesmo não se poderá dizer de zonas com larga história de ocupação de múltiplas nações. Cada uma terá direito a reclamar um nível de auto-determinação, mas não o direito a um território independente, um Estado, no qual outras nações têm raízes históricas. Tal criaria uma contradição entre os direitos de auto-determinação das várias nações existentes no mesmo território. Assim, quando o movimento sionistas declarou "uma nação sem pais, uma país sem Nação" ignorou esta diferença, ao assumir que a região da Palestina era um deserto étnico, pronto a ser ocupado e dominado por uma única etnia, com direito divino a estabelecer um estado judaico numa região onde há milhares de anos coexistiam várias etnias.

Eu posso afirmar, sem reservas e sentido de estar em contradição, dizer que sou patriótica e internacionalista. Por um lado, tenho um grande amor ao povo português, à sua cultura diversa, do Algarve a Trás-os-Montes, do Continente às Ilhas, uma ligação visceral à sua história, ressonância com a sua música e literatura, uma identificação com a sua forma de ser (sem estereotipar), e uma ligação familiar e de amizade com Portugueses. Sinto igualmente uma ligação com outras culturas, mas de outra natureza. Sou movido por músicas de outras culturas, pela literatura de outras culturas, em grande medida porque contêm aspectos que são universais, fazem parte de uma entidade mais alargada ao qual também pertenço: a humanidade. Sinto também solidariedade pelas lutas de outros povos, porque partilho ligações objectivos de classe: a paz e a justiça social. Identificar-me como Português de forma alguma significa que considere o nosso país ou povo superior, mas considero – porque considero a diversidade cultural um valor – que Portugal tem direito a existir enquanto entidade autónoma e independente. E no actual contexto de ingerência imperial, considero um dever defender a soberania nacional, pois só assim se poderão defender os interesses e a viabilidade do nosso povo e país. Porque considero que as ingerências da NATO e da UE na política nacional Portuguesa não estão alinhadas com os interesses nacionais, pelo contrário, tendem a prejudicá-los e eventualmente eliminar a existência da nossa soberania nacional.

Por fim, mais uma citação de um debate sobre este tema extraído do romance «Os Thibault» (vol. II, pp 230-232):

—Fritsch é um sectário—prosseguiu Jacques.—E depois, pare- ce-me que ele confunde uma porção de coisas, de valores muito diferentes: a ideia de Nação, a ideia de Estado, a ideia de Pátria. Daí essa impressão de que ele pensa em falso, mesmo quando diz coisas que parecem justas.
Vanheede escutava, de olhos cerrados. As pestanas incolores escondiam o olhar; um trejeito abaixava a comissura dos lábios. Recuou até à mesa e, afastando um pouco os ficheiros, os objectos de toilette, os livros, sentou-se.
Jacques continuava, num tom hesitante:
—Para Fritsch e para os que pensam como ele, o ideal inter­nacional implica de início a supressão da ideia de Pátria. Será necessário? Será fatal?... Não julgo isso assim muito certo.
Vanheede ergueu a sua mão de boneca:
—A supressão do patriotismo, pelo menos. Como imaginar a revolução somente no cenário estreito de um único país? A revolução, a verdadeira, a nossa, será uma obra internacional! E que deverá ser realizada ao mesmo tempo em toda a parte, por todas as maiorias trabalhistas do Mundo!
—Sim. Mas, tu vês: tu mesmo fazes uma distinção entre a ideia de patriotismo e a ideia de Pátria ?
Vanheede sacudia obstinadamente a sua cabecinha coberta duma cabeleira crespa, quase branca:
—Isso é a mesma coisa, Baulthy. Veja o que fez o século IXI: exaltando por toda a parte o patriotismo, o sentimento dr pátria, fortificou o princípio dos Estados nacionais, semeou o ódio entre os povos e trabalhou para novas guerras.
—De acordo. Mas não foram os patriotas, foram os nacio­nalistas do século dezanove que, cm todos os países, falsearam a noção de pátria. A uma ligação sentimental, legítima, inofensiva eles substituíram um culto, um fanatismo agressivo. Condenar tal nacionalismo, isso sim, sem dúvida alguma! Mas deveremos, como faz Fritsch, rejeitar ao mesmo tempo o sentimento da pátria ? Essa realidade humana, por assim dizer física, carnal?
—Sim! Para ser um verdadeiro revolucionário, é preciso, inicialmente romper todas as ligações, extirpar de si...
— Cuidado—interrompeu Jacques:—tu pensas no revolucio­nário, no revolucionário-tipo que queres ser; e perdes de vista o homem, o homem em geral, tal como o condicionaram a natureza, a realidade, a vida... Aliás, esse patriotismo sentimental de que falo, poderá ser suprimido? Não tenho a certeza disso. O homem por mais que se esforce é um produto do clima. Tem o seu tempe­ramento de origem. A sua constituição étnica. Pertence aos seus hábitos, às formas particulares da civilização que o moldou. Onde quer que esteja, ele conserva a sua língua. Atenção! Isto é muito importante: o problema da pátria talvez não passe, no fundo, de um problema de linguagem! Onde quer que esteja ou que vá, o homem continua a pensar com as palavras, com a sintaxe, do seu país... Olha ao redor de nós! Os nossos amigos aqui de Genebra, todos esses voluntários, que acreditam de boa fé ter repudiado a sua terra natal e formar uma autêntica colónia internacional! Vê como por instinto eles se procuram, se reúnem, se aglomeram e formam pequenos grupos italianos, austríacos, russos... Pequenos clãs indígenas, fraternais, patrióticos. Tu mesmo, Vanheede, com os teus belgas!...
O albino estremeceu. As suas pupilas de pássaro nocturno fixaram-se em Jacques com um lampejo de censura, depois volta­ram a desaparecer sob a franja das pestanas. A sua miséria física acentuava ainda mais a humildade das suas atitudes. Mas o seu silêncio servia-lhe mais do que tudo para proteger a sua fé, mais firme do que o seu pensamento, e que, sob aparências tímidas, era extraordinàriamente segura de si mesma. Ninguém, nem mesmo Jacques, nem mesmo o Piloto, exercia verdadeira influen­cia sobre Vanheede.
—Não, não—continuou Jacques:—o homem pode expatriar-se mas não pode despatriar-se. E esse patriotismo não tem nada de fundamentalmente incompatível com o nosso ideal de revolucio­nários internacionalistas!... Por isso eu pergunto a mim mesmo se não será imprudente a gente declarar-se, como faz Fritsch, contra esses elementos que são essencialmente humanos, que re­presentam forças. Pergunto mesmo se não será nocivo despojar deles o homem de amanhã. —Calou-se alguns segundos; depois, num outro tom, indeciso, como embaraçado por escrúpulos: —
Penso assim e, no entanto, não ouso escrevê-lo. Principalmente num artigo de poucas páginas. Seria preciso escrever um livro inteiro para evitar os mal-entendidos.—Calou-se de novo, e, de repente:—Aliás, esse livro, também não o escreverei... Pois, afinal de contas, não tenho a certeza de nada! Quem sabe lá? O homem despatriado não é inconcebível. O homem adapta-se. Talvez aca­basse por se acomodar com essa mutilação...

Um comentário:

Anônimo disse...

Cá em Portugal temos repulsa pela palavra "nacionalismo", mas lá fora é habitual falar-se em "nacionalismo de esquerda", que é como quem diz, patriotismo. :-)